MUNDO - Jornalista não precisa morder - (por Dorrit Harazim) - O Globo
Ao completar cem anos de existência em 1921, o admirável jornal liberal britânico "The Guardian" publicou um ensaio comemorativo. Assinado por C. P. Scott, que o dirigiu por quase 60 anos, o texto cunhou uma frase que se tornaria célebre: "O comentário é livre, mas os fatos são sagrados."
O inglês Piers Morgan apresenta, há dois anos, o único programa de entrevistas do horário nobre da CNN, o canal a cabo americano que inventou o noticiário televisivo global. Morgan fora importado da Inglaterra para suceder ao totêmico talk show man Larry King, que reinou no posto por mais de um quarto de século, todos os dias.
Na Inglaterra, onde teve a carreira moldada como editor de três tabloides ("The Sun", "News of the World" e "Daily Mirror"), Morgan deixou poucas saudades entre seus pares, a julgar pelo perfil publicado na edição de novembro de "Vanity Fair".
Tem no currículo dois puxões de orelha graves: um do órgão regulador da imprensa britânica, num caso de manipulação de informação financeira privilegiada; outro do relator da Comissão Leveson, que investigou o escândalo das escutas telefônicas ilegais e as práticas da imprensa no Reino Unido, e onde teve de prestar depoimento por mais de duas horas. Suas respostas foram consideradas "totalmente desprovidas de credibilidade", segundo o relator.
Nos Estados Unidos, mesmo antes de ocupar o atual posto na CNN, Piers Morgan era um "famoso". Não como jornalista mas pela sua projeção em reality shows.
Fora o vencedor do primeiro programa da série "Celebrity Apprentice" inventada por Donald Trump e celebrizou-se como jurado do concurso America's Got Talent, da NBC.
Conquistou seu espaço na América graças a duas ferramentas sempre eficazes junto ao telespectador americano — um legítimo sotaque britânico, somado a uma cultivada falsa fleuma à la Hugh Grant.
Mas não apenas por isso. Também por ser inteligente, versátil e saber conduzir entrevistas de forma ágil. Bajulador com celebridades e mordaz quando lhe convém, Morgan é exímio no estilo morde e assopra.
Foi no dia da matança de 27 pessoas (26 numa mesma escola) na cidade de Newtown, estado de Connecticut, por obra de um jovem perturbado cuja mãe guardava cinco armas em casa, que Piers Morgan atropelou o ensinamento de C. P. Scott de que a opinião é livre.
Como cidadão residente nos Estados Unidos, Morgan sempre se engajou abertamente a favor de leis mais severas contra o acesso a armas nos Estados Unidos. A tragédia da escola Sandy Hook, portanto, lhe era cara.
Mas foi como jornalista que ele convidou o diretor de um grupo lobista pró-armas a ser entrevistado em seu programa. E foi como jornalista que ele surtou.
Subiu o tom de voz, lançou-se numa catilinária imperiosa, impediu o entrevistado de expor qualquer ideia até o fim e encerrou o programa de forma abrupta, chamando o convidado de "homem extraordinariamente burro, sem um mísero argumento coerente", que "envergonha o seu país".
No dia seguinte, repetiu a extravagante autopromoção com outro convidado pró-armas, John Lott, autor de "More guns, less crime" ( ainda sem edição no Brasil).
Resultado: ao telespectador, foi o jornalista que pareceu saído das cavernas; aos ultradireitistas treinados para não se exaltar em debates, coube o papel de guardiães da civilização.
E como num passe de mágica, o antes charmoso sotaque britânico com que o apresentador vociferou contra as leis americanas, que comparou às inglesas, soou arrogante, ofensivo, colonialista.
Não espanta, assim, que a esdrúxula petição encaminhada à Casa Branca por mais de 80 mil signatários, pedindo a deportação de Morgan, não tenha lhe gerado as esperadas simpatias liberais. Independentemente da causa, truculência e jornalismo não combinam.
Nos Estados Unidos, toda petição precisa alcançar pelo menos 25 mil assinaturas no prazo de 30 dias para merecer uma posição da Casa Branca. A que acusa o "cidadão britânico Piers Morgan de atacar a Segunda Emenda... e usar sua posição de destaque numa cadeia nacional de televisão para lançar ataques contra os direitos dos cidadãos americanos" precisou de apenas 48 horas para chegar a esse patamar.
A jocosa "contrapetição" preventiva lançada alguns dias depois na Inglaterra, pedindo que o jornalista seja mantido nos Estados Unidos, apenas atesta sua escassa popularidade em casa.
Ao invés de calar os entrevistados no grito, Morgan teria sido mais eficaz noticiando a última novidade da Amendment II, fabricante de equipamentos leves para uso das forças de segurança americanas: uma nova linha de mochila para crianças.
O modelo infantil feminino é rosa choque e azul celeste, com o desenho de três princesas do mundo Disney na frente. Custa 300 dólares. O equivalente para meninos traz a imagem dos super-heróis Vingadores na parte externa. Todas têm placas blindadas na parede interna, "destinadas a manter a criança segura em caso de tiroteio na escola".
Segundo o presidente da empresa, Derek Williams, as vendas triplicaram desde a matança em Newtown. O anúncio de uma criança loirinha de uniforme e mochila blindada nas costas, dando tchauzinho na porta da escola e a chamada "Sua paz de espírito é nosso negócio" diz tudo.
Outros seis fabricantes já se lançaram no mercado de mochilas à prova de balas, com modelos de nomes sonoros como "La Rue Tactical Backpack Schield BP 3A Level III Ballistic Plate". Vale conferir a propaganda da mais insana Diz mais do que dez entrevistas. - (Dorrit Harazim é jornalista) - (recebido por e-mail)